sexta-feira, 14 de abril de 2017

Carolinas ou Marietas: Pretas!


Quarto mês do ano e eu no meu quarto lendo Quarto de Despejo. 

Carolina me emocionou a cada duas páginas, mas quando disse que as panelas no fogo de qualquer barraco também servem de adorno, que elas enfeitam um lar, ela poetizou a fome. E a última obrigação da poesia é ser bonitinha! Poesia é sentimento e quando a fome é fato, poesia é válvula de escape pro sufoco de existir. É detalhar dor como quem separa sílaba. Daí, toda vez que chego na armênia pela Pedro Vicente, visualizo a preta carregando água as 5 da manhã. Ou papelão. Ou ossos doados pra sopa. Quando paro no meu quarto pra escrever, penso nos meus recursos e no quão eles me privilegiam. E vejo Carolina em cada tia preta que limpa o banheiro da armênia ou vende amendoim. Vejo Carolina em mim, que peço carona pra chegar na faculdade pra ter o papel que me dá legitimidade de escrever isso, cientificamente. Isso o que? Pra que? Quem escreve não sabe responder. É a mesma coisa que comer sabendo que vai cagar. Escrevo pra me manter viva, me alimentar. Escrever te liberta de você, mas o sistema permanece intacto. Onde estão os pretos? Onde permanecem as pessoas pretas nesses 517 anos de Brasil? Ser poeta não te livra de viver tragédias, mas parece que as tragédias te obrigam a ser poeta.




Eu tenho muita coisa pra fazer, tá chovendo e tem louça na pia. Mas parece que a indisposição citada pela Carolina toda manhã, também é minha hoje. Indisposição. Causada pelo que? Consciência? Ignorância? Ingratidão? 

O fato é que eu vim fazer reclamações idênticas, com um “q” de ~agora sei mais sobre~. A reclamação repousa na convicção de que poderia ser melhor, mas não na certeza em como deveria ser. Me faltam convicções que eu deixei cair em algum vão entre o trem e a plataforma, porque eu nunca respeito a faixa amarela de segurança da vida. E nunca to em casa, sempre to indo pra algum lugar, pq é na mente que carrego meu lar. Gosto da noite de uma forma doentia, afinal não conheço poetas saudáveis. 
Inclusive enquanto escrevo aqui do alto da minha insignificância, alguma mulher da minha idade acaba de morrer na Síria, que foi atacada com dezenas de mísseis lançados pelos EUA. A Marvel fez homem de ferro com a trilha sonora de AC/DC, mas a guerra não produziu heróis, só genocídio. Então vou continuar a escrever pelas mulheres cheias de neurose assim como eu, que hoje morreram. Será que elas deixaram alguma carta? Será que elas escreviam também? Pra se imortalizar, seila? Sei que vou viver muito, mas talvez nenhum dia com a paz que gostaria. 

Os baguio é loco, vai venu as estatísticas no Brasil são produzidas pra serem ignoradas. Fico imaginando o trabalho dos pesquisadores do IBGE, dos pião da área que vão a campo, dos estagiário desenvolvendo tendinite. Não que seja grandiosamente lastimoso, mas é inútil. Aqui, um jovem negro é morto a cada 23 minutos. Não estamos em Guerra declarada pelo Estado, e isso da a impressão de que devemos agradecer a esse tropicalismo cínico. Mas o Brasil mata mais gente, do que os países que estão em guerra! 

E não é afirmação exagerada pra causar comoção. É estatística! Aqui, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, e recentemente uma mina foi estuprada por 33 caras. Ela tinha ou tem (sepa ta viva) 16 anos. então eu te pergunto:

O que é morrer? 


Estatísticas são produzidas por empresas corrompidas pelo Estado que tem a intenção de maquiar e ocultar as verdades. Imagina se não existisse concessão pública?  Eu tento duvidar de tudo, mas odeio ta de kebrada e entrar em xoc pq vi um homem qualquer, e isso acontece todo dia. Maldito feminismo que habita em mim muito antes d’eu descobrir que esse sentimento tinha nome... 

Eu to com raiva do mundo e com raiva da minha inutilidade perante ele. Ontem eu tava na rua da minha falecida vó paterna que teve 10 filhos, quando olhei o pretinho nos olhos e disse que não penso em ter filho. Mesmo sabendo que nosso filho seria lindo. Beleza não basta pq fora da casca, nóis é alvo. 

E a pele dele escura e lisa quase me faz mudar de ideia. 
Seu carinho desesperado quase me comoveu. 
E boca dele contornando meus lábios quase me fizeram esquecer: que eu não quero filho.

O mundo é um lixo, nunca foi propício às pessoas sensíveis: Que gostam de beijar as pálpebras enquanto o outro dorme. Que gostam de observar, contemplar o silêncio do sono e ouvir com o coração tudo que é dito ali, memorizar a simplicidade e eternizar a pessoa numa poesia que ela nunca vai ler. O mundo que eu vivo, criminaliza carência, naturaliza tragédia, ridiculariza emoção. O mundo que eu vivo, ignora estatísticas, pré-fabrica mortes e atrofia a ação. 

Eu vivo nesse mundo sim, mas não pertenço a ele. Damos graças por isso.