segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Funk: lixoso é meu preconceito!


Dedico essa reflexão aos que realmente estão preocupados com os rumos da nossa sociedade e principalmente da juventude. Dedico aos que estão realmente interessados em ajudar. Aos que só querem causar intriga e mais segregação, eu sugiro que permaneçam nessa bolha de "velhas opiniões formadas sobre tudo" e não se dêem o trabalho de lê-la. – Larissa Cordeiro.


Mulher, 20 anos, aspirante á intelectual, crítica, chata e sensível. Dizia-me preocupada com o futuro dos jovens que cantam e/ou escutam o Funk, mesma preocupação que os conservadores tem ao contrariar a proposta de cotas, sabe? Então...
Estudo sociologia por inúmeros motivos, mas ouso resumi-los: (a) insatisfação constante com a realidade; (b) extrema necessidade de compreende-la e de alguma forma provocar mudanças significativas.

Cresci ouvindo reggae, rap e MPB. Na minha cabeça - fechada, dura e pequena - esses eram os estilos musicais dignos de atenção, pois traziam conteúdo de "qualidade".  Todo resto, para mim, era desprezado, e o funk conseguia ser mais que desprezado, eu o tratava como nada, um (des)serviço social. É importante dizer que, toda essa avaliação era feita com base nos meus próprios parâmetros de bom, ruim, cultura, não-cultura, moral, imoral. Parâmetros formados e abastecidos por discursos conservadores típicos dessa grande metrópole chamada Terra da Garoa.

 Mas o que é música de qualidade? O que é cultura? O que não é cultura? O Funk é cultura? Deve ser desprezado? O que é preconceito? O que é sensatez? E a compreensão, existe?
Não tenho respostas pra nada, e isso é o mais legal de tudo, pois quando comecei a questionar-me sobre tudo isso, ficou bem mais difícil desprezar o funk seja como expressão popular, como cultura etc. Minha primeira tarefa foi abandonar o ódio ao ritmo e tratar este fenômeno social, com o devido respeito. Se for pra ser aquele cientista social que só enxerga os fenômenos sociais que quero enxergar, prefiro não sê-lo.
Existe uma linha tênue que divide o som que você vai ouvir no seu fone de ouvido, no seu carro, na sua casa, e a tal sonhada compreensão sobre o fenômeno, seja ele o funk ou qualquer que seja. Não estou pedindo que todos os eruditos destruam seus discos do Vivaldi e Beethoven e os troque por arquivos digitais (MP3) do MC Daleste e MC Felipe Boladão (Isso é pra quem pode, não pra quem quer...rs). O que estou pedindo é que você disponibilize-se a refletir e enxergar que o artista que compõe uma ópera, é tão ser humano e artista, quanto o que canta "Mata os puliça é nossa meta".

 Quais foram as situações político, sociais, ideológicas, econômicas as quais Vivaldi fora exposto desde pequeno, para que sua música fosse tão "boa" e apreciada mundo a fora? A mesma pergunta cabe à cada MC morto misteriosamente em São Paulo, por cantar o que nós, intelectuais modernos e progressistas, não queremos ouvir. Cada MC morto em SP está dentro da lógica do extermínio da população jovem, pobre e preta de São Paulo.
– Larissa, o que é "genocídio da população jovem, pobre e preta de São Paulo"? Perguntou meu irmão para mim durante um Debate que ocorreu na biblioteca Mario de Andrade no último sábado (24/08/2013) – muita calma nessa hora grande intelectual/erudito, se para você é complicado entender, o que não deveria ser, eu lhe explico, tem gente que não sabe, ok?

Calmamente explico a ele: é quando você - pobre, preto e favelado - não é reconhecido na sociedade (não tem moral, saca?) e por isso é visto como digno de morrer, por decisão de um Estado fascista, racista e outros “istas” existentes. É quando você tenta cantar sua música, com suas palavras, com seu conhecimento, com suas “armas”, e é recebido carinhosamente pela Polícia Militar de São Paulo à tiros de escopeta. É quando no cemitério mais perto da sua quebrada, tem um amigo de infância enterrado porque a polícia matou. É quando a polícia invade o morro e/ou sua casa e sua mãe ora. Tenho certeza que você sabe do que estamos falando, você não sabia que existia um modo “bonitinho” de falar sobre toda essa violência.
 Quando um jovem de 20 anos aspira uma posição socioeconômica elevada, e consegue alcançá-la cantando funk, a sociedade entra em choque. Você deve estar se perguntando: como assim? Por quê? É cara pálida, realmente, isso é inadmissível. “Vamos criminalizar, afinal, cantar funk não é trabalho. Mas cantar rock é. Por quê? Porque alguém quer que seja assim”.

Quando um jovem de periferia compra um carro de R$ 100.000,00 com o dinheiro do "funk lixoso", os conservadores e tradicionalistas piram. Os pseudo-esquerdistas piram. Quase todo mundo, pira! Felizmente que é quase todo mundo. E o Estado, o que faz? Essa resposta é óbvia, afinal, está em todos os telejornalismos sensacionalistas, manda matar, oras. "Por que pobre não pode ser nada, ter nada, sonhar com nada. Pobre tem que se manter e aceitar a sua condição de eterno sofredor."
 Eu não queria que fosse este tipo de cultura que os jovens acreditassem ser a solução dos problemas, por um único motivo: este estilo musical sofre tanta discriminação que, Daleste não é o primeiro da esfera a morrer assassinado inexplicavelmente, e não será o último - infelizmente.  Caso os jovens se tornassem MCs (vendo isso como a "solução dos problemas") e tivessem a segurança de que não seriam mortos por cantarem o que querem cantar, eu não ficaria tão preocupada. E ainda diria: Quer ser MC? Vai na fé! 
Mas como vou propor isso aos jovens, se os MC estão sendo exterminados, como se a morte deles sanasse os problemas sociais?
Quer dizer, agora só pode cantar o que o Outro decretar que pode? Só pode falar o que o outro quer ouvir? Só pode ostentar quem tem dinheiro? Fazer isso é o mesmo que dizer: "Juventude pobre, cale-se! Neste mundo não existe espaço pra vocês acharem que podem algo."

 Porque será que um jovem de periferia não presta atenção nas aulas, não frequenta a escola, não respeita os ouvidos alheios, sonha em ser traficante, assaltante e matar PMs? Porque uma jovem de periferia sonha em ser prostituta? Sonha em vender seu corpo em troca de algum status e fama? E porque que isso deve ser regra aos pobres? 
Existe uma série de motivos que são muitos mais pertinentes do que "ouvir funk", dirão os “especialistas”. O funk em São Paulo explodiu agora, e não deve ser culpabilizado pelas mazelas de nossa sociedade, pois elas sempre existiram.
Matar o funkeiro não resolverá o problema. Matar o funkeiro não acabará com o Funk. Matar o preto não lhe tornará branco. Matar o pobre não lhe enriquecerá. MC Daleste morreu trabalhando, isso não tem nada a ver com o ritmo musical. Morreu no palco, fazendo o que gostava, cantando. Agora se você gosta de funk, de clássico, de bossa nova ou de pagode, é outra coisa. Se o que ele faz é para você, bom ou ruim, do bem ou do mau, não justifica nem minimiza o absurdo que foi a sua morte.
A discussão não é sobre o funk. É sobre a vida. Vida de milhares de jovens que são criminalizados e violentados por um Estado ausente que atua com uma política de exceção. Não sou fã de nenhum funkeiro ou do funk propriamente, mas sou fã da vida e do direito de viver.

 Mais uma vez podemos identificar o Estado tentando transferir sua responsabilidade e ausência para com esses jovens criminalizando o funk. Olha o ponto que chegamos! O Estado não lhes da saúde, moradia, educação de qualidade e tudo mais que a Constituição exige, mas quer cobrar tudo isso dos mesmos jovens. Muito coerente. É como pedir vinho pra quem só tem água. Nenhum jovem da periferia é Jesus, ok? Pedir para lhe dar o que jamais recebeu é bastante injusto, não acha?
Ser MC pode livrar este jovem das drogas, do crime, pode oferecer a ele "um futuro", do contrário do que alguns acreditam nem todo jovem que está ligado ao Funk é traficante ou ladrão. E por que ele não pode? Na verdade, ele nunca pôde. Só pode fazer o que a burguesia estabelece que ele faça, ou seja, seja massa de manobra. Só pode trabalhar 10 horas do dia de segunda a sábado pra ganhar um salário mínimo, quando muito, R$ 900,00 – tendo base que esses novecentos reais serão repartidos entre impostos, alimentação, luz, água, aluguel etc.

Se a tendência dos jovens que escutam funk é ser parecido com os ídolos, que essa tendência se firme como propósito, oras! Pois eu prefiro que um jovem seja cantor de funk de ostentação do que um drogado ou assaltante tendo bocas e nariz enfeitados com algodão, antes de completarem o ensino fundamental, ou terem direito a sua festa de 15 anos, ou, darem à mãe o orgulho de se formarem em uma Universidade Pública– não espera, terá que ser Faculdade Privada, afinal, as Universidades não tem espaço para o grupo que tem na pele a marca dos três Ps (pobre, preto e periférico)!
Agora, sinceramente, se o critério para que a execução e o extermínio sejam justificáveis e/ou pacificamente aceita, e aplaudida, pela maioria for o quão este indivíduo colabora para o avanço da sociedade como um todo, acredito que teremos que redirecionar este alvo, não concorda? Numa coisa concordamos: este que aperta o gatilho junto com a polícia não mora num barraco de madeirite, não está no final da feira pegando restos, muito menos numa penitenciaria (ou casas de reabilitação, como gostam os politicamente corretos) sendo torturado. Ele está atrás do balcão de mármore, de terno e gravata, assinando contratos com sua caneta de ouro, seguro dentro do seu condomínio de luxo que, muitas vezes, contrasta com a favela, quando não a desaloja. São essas diferenças que precisam aparecer, quer dizer, que precisam ser explicitadas, por mais óbvias que elas possam parecer, às vezes, o óbvio escapa da percepção.

 Portanto, lixoso é o meu (e o seu) preconceito. Minha (e sua) mania de achar que o mundo gira ao redor do meu umbigo. Minha (e sua) tendência de achar que sei muito sobre o que é bom ou ruim para o outro. Minha (e sua) maldita arrogância.